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A Barley Wine do Cerne tinha que ter essa personalidade forte: maturada em barril de bálsamo - ou cabreúva, como queira - e com adição de doce de leite, essa cerveja saborosa é potente e cheia de vontade. 

A Cabreúva

 

O espelho do sertão naqueles tempos não era muito diferente do que se vê agora. Um lugar onde só os fortes sobrevivem àquele clima, por já estarem calejados de tanto sofrimento e enxergarem a beleza até mesmo nos lajeiros, que reproduzem, não se sabe se o calor do sol ou do centro da terra, por outros chamado de inferno. Para quem não conhece, para onde se olha se vê a morte, parece que brincando num parque de diversões. Chão rachado da secura, vegetação seca (fora alguns cactos como o mandacaru e a coroa de frade, e também umas algarobas, juremas e umbuzeiros), algumas ossadas de animais que não resistiram, ou até foram surpreendidos por aquela cascavel, que se esconde nas pedras quentes. Pois é, até o cheiro daquele lugar é diferente, muitas vezes confundido com o odor da assolação, do fim dos tempos. Mal sabem eles que o verdadeiro cheiro que a morte exala está presente nos grandes centros, sendo expelido pelas fábricas, veículos e pelo suor do trabalhador, que tenta filtrar todas essas mazelas cotidianas. No sertão, basta uma chuva para toda a vida florescer. Na cidade, basta uma chuva para que as diferenças aflorem.

 

Voltando à caatinga, próximo do pôr-do-sol daquele dia normal, ou seja, quente que só a moléstia, depois de alguns quilômetros abrindo picadas no facão, numa densa e brava mata de jurema, no sul da Bahia, o capitão não percebe na trilha uma coroa de frade e enche o seu pé com seus espinhos. O bando se ajeita debaixo da sombra de uma frondosa algaroba. O capitão se assenta num matacão de granito, tira sua alpercata e começa a extrair os espinhos de seu pé, quando uma agradável surpresa o faz até parar com a missão, bem após uma rajada de vento terral, que soprava naquele fim de dia. Um aroma agradável toma todo lajeiro, como se fosse o sopro de anjos, que trazia em seu hálito o aroma inconfundível do bálsamo. “Ô Corisco, vá no rumo do vento e encontre de onde está vindo esse perfume, pois será lá onde armaremos nosso acampamento”. Ordenou o capitão. De prontidão, Corisco saiu rasgando a mata, com seu facão que parecia sair fagulhas, de tão dura que eram aquelas madeiras. Durante alguns minutos só se ouvia o tilintar do aço, que golpeava com destreza os galhos duros e cheios de espinhos. Até que o silêncio reina e, logo após, ouve-se o grito do cangaçeiro, seguido do eco. “Achei, capitão…capitão…capitão!!! Podem vir..vir..vir!!!”. E eles foram, com todo o cuidado pela picada, que não era um caminho fácil, pois era a descida de um barranco alto e bem íngreme, que os levava até um vale, que se abria logo após uma nascente de águas cristalinas, regando as raízes de frondosas cabreúvas floridas, origem do perfume, que sombreavam toda a margem da nascente, com suas enormes copas. Maria golpeou o tronco de uma delas, tirando um pedaço da sua casca, sentindo sua agradável fragrância. Lampião, vendo uma daquelas árvores caída, teve a ideia de tirar umas tábuas, para fazer uns barris e armazenar umas cachaças que ganhou de uns colonos, de um lugarejo por onde passaram alguns dias antes. E aquela cachaça acabou virando uma das bebidas preferidas do bando. Uma cachaça “Puro Bálsamo”, com um perfume marcante, suave na boca e de uma cor bela e intrigante. A bebida mexeu tanto com o juízo dos cabras, que eles haviam até esquecido de uma certa birita que sempre ornava as suas festas: a cerveja.

 

E chegou ao ponto deles quase perderem os insumos que tinham armazenado. Maria, percebendo tal situação, botou a panela no fogo e encheu de malte. Tanto malte que quase não cabia. E foi mexendo devagar, com todo cuidado para não transbordar. Se sentia aquele cheio de malte de longe, ao ponto de atrair um bando de tropeiros, que disseram que estavam vindo das terras das Minas Gerais e traziam consigo muitas iguarias, como queijo, goiabada e doce de leite. Eles se deliciaram com tudo aquilo e Maria, que não conseguia largar o pote do doce de leite, teve o alento de “deixar cair” uma boa porção daquele pitéu na panela onde fervia a cerveja. O resultado da mistura daquela grande quantidade de malte com a generosa colherada do doce mineiro foi uma cerveja densa e alcoólica, que mais parecia um licor ou um vinho.

 

O capitão colocou um cálice para ele, deu um xêro nela, jogou-a na boca, balançou a cabeça como que aprovando e falou para Maria: “Isso é uma quimera, Maria. Uma deliciosa mistura. Duvido que você, no alto do poder da sua inventividade, da sua loucura, possa fazer alguma coisa para deixá-la ainda mais inebriante”. Maria olhou carinhosamente para Lampião, pegou toda a cerveja, despejou num dos barris da cabreúva e lhe respondeu: “É mais fácil não se criar expectativa das atitudes dos sãos. Já dos loucos…”

É certeza que o Sertão outrora tinha

Seca, fome, violência, dor e morte

E a situação tornando o povo forte

Valorando o que tem mais do que “o que vinha”

Já tá bom de parar com essa ladainha

Que por lá só aflora é muito mais tristeza

Pois se chove, tudo se enche de beleza

Diferente do que aqui tenho vivido

Se tá seco é que por lá é permitido

Quando chove por aqui é malvadeza

 

E no pôr-do-sol de mais um normal dia

Com um sol quente, brasa pura, de lascar

Lampião pois logo inventa de pisar

Na coroa que na trilha então jazia

Abaixou sem disfarçar a dor que havia

No granito, à sombra gris da algarobeira

Terral sopra, levantando pó, poeira

Também traz no rastro um aroma conhecido

E Corisco sai seguindo o seu sentido

Cabreúvas florando na cabeceira

 

A cachaça numa dorna então caiu

E depois foi que se encheram da birita

“Que bom xêro exala e tem essa bendita”

Eis o bando, encantado com o perfil

Puro Bálsamo é pra todo esse Brasil

Mas Maria não se esquece a outra bebida

A panela tá de malte entupida

Que o seu cheiro até atraiu jovem mineiro

Forte doce, é de leite ao derradeiro

Descansar na Cabreúva do barril.

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